Monday, January 26, 2009

Disco Furado


É como aqueles velhos LP's arranhados. A minha vida anda parecendo um disco furado. As mesmas músicas de sempre, os mesmos filmes de sempre, os mesmos papos de sempre, mesmas pessoas, mesmos problemas, mesmas insatisfações, mesmas impossibilidades de mudanças, mesmas inabiliades sociais, mesmos desejos, mesmas fantasias, problemas, salário, caminhos, ônibus, exercícios físicos, corpo, cabelo, espelhos, trabalho, shoppings, parques, cidades, viagens, fugas...

Mesmos posts de sempre.

O disco pode ser diferente. O som anima e, por alguns momentos, tudo é novo e excitante. Mas, vem a agulha se encontrar com o arranhado, e tudo é repetição de novo. Mesmas músicas, mesmos papos, pessoas, problemas....


André Marçal

Friday, January 09, 2009

Erro

A primeira decisão substancial de sua vida e você se sente orgulhoso, finalmente. Mas, não consegue evitar aquele sentimento tão familiar quanto um velho amigo de que, talvez, tenha demorado um pouco demais. Afinal, apesar de todos ainda te chamarem de garoto e sua aparência ainda ser jovial, a realidade é que os anos insistem em passar rápido demais para o seu gosto. E não existe nada que você possa fazer para impedir isso. Lamentar-se já se tornou um tanto cansativo e inútil. Por isso, pela primeira vez, você age de forma impulsiva e inconsequente.

E é bom. Você se sente bem. De alguma forma, a sensação é de que existe uma saída para o labirinto de sua vida. O túnel não é tão escuro assim. É claro que existe a grande possibilidade de nada dar certo; de que absolutamente nada do que você imagine acontecer de fato aconteça; de que as coisas continuem da mesma forma, e que apenas o cenário mude.

Pessoas podem acusar que tudo não passa de fuga. Você prefere acreditar que seja estilo de vida diferente e mais experiência de vida. De qualquer forma, o que quer que aconteça, pelo menos você poderá falar que erro foi seu. Você cometeu sozinho. E vai ser isso que você vai contar para todo mundo na volta: aonde errou.

E quantas pessoas não têm ao menos coragem de errar?



André Marçal


Sunday, January 04, 2009

Nunca é Tarde Demais


- Vê se vá comer lá fora! - dizia a minha mãe farfalhando seu vestido ao andar e logo depois batia a porta atrás de mim. Eu ouvira sua voz berrando pra mim enquanto descia a escada, mas somente seu som abafado e fugaz. Eu estava deliciado demais com o cheiro do doce derretendo sobre minhas mãos salpicadas de terra. Eu pressentia, eu sabia que aquele era um momento memorável, lá no fundo eu sabia, ainda que naquela hora eu não desse maior crédito a tudo.
O cheiro era bom demais! Lucinha fazendo uma bolota de terra, a luz do sol minguando lilás lá longe, mosquitos movendo-se tontos sobre os nossos olhares cansados. Nós nos entreolhamos por um brevíssimo momento para voltarmos nossa atenção para o doce. Lucinha largou de pronto a terra e os brinquedos, limpando com muita feminilidade seus dedos sobre o vestido curto. Agora só pensávamos em devorar ferozmente aquele doce. Só de olhá-lo podiamos ouvir nosso estômago pescando o prazer da fartura. Éramos levados por nosso instinto animal. Para duas crianças pobres e caipiras nós até que podíamos dizer que tínhamos o necessário: o desejo, os sonhos, a indiferença infantil com o mundo e é claro, um amplo e misterioso banquete chamado "vida" - e tão gostoso que ele era que apesar das nossas apostas de corrida de bicicleta, escaladas em abacateiros e conflitos internos sobre a difícil decisão de espetar ou não aquele cacho de abelhas, pareciam percorrer rápido demais as vinte e quatro horas do dia. E no final de tudo, a nossa trágica e dramática relutância de ir para a cama era completamente esquecida com um simples beijo de boa noite na testa.



Mas eu estava lá, ao pé da escada, vislumbrado com o doce na minha mão. Contrariado, acabei dividindo o doce com Lucinha, que comeu tudo em um único segundo, preferindo descobrir o sabor pelos restos de sebo que lambeu dos dedos. Eu não, eu decidi comer bem devagar. Pra começar, coloquei a ponta da língua. Ainda estava tão quente que fiquei assustado ao pensar que minha irmã poderia estar queimando por dentro enquanto a metade dela descia goela abaixo, quando na verdade não aparentava nehuma amostra de sofrimento. Meus dedos calejados de moleque pareciam não ser tão frágeis quanto os órgãos inferiores. Decidi então dar-lhe uma esfriada. Eu sacodia a barra pelo vento enquanto sentia seu aroma se espalhar no ar e ser sugado por todos os poros do meu corpo, até que se arrepiassem os meus cabelos da nuca.



- Você não vai comer não? - Disse Lucinha pendendo a cabeça para esquerda e levantando os olhos com desdém. - Tá muito quente... - Disse eu, distraído e pensando na burrice de minha irmã em ter comido tudo de uma vez.



Cansado de sacudir pra lá e pra cá, decidi encostar o doce na ponta dos lábios. Salivei. Mas ainda estava quente. Aquilo me deixou irado. Fiquei automaticamente vermelho, não só porque queimara os lábios, mas pela humilhação de ouvir a gargalhada histérica de Lucinha, que apontava pra mim, como se eu fosse um frangote. Na revolta de ter sido humilhado por um doce e uma pirralha, e ainda com o orgulho ferido de ser menos resistente que uma menina gulosa, decidi colocar tudo de uma vez na boca. A descrição do que veio depois é muito difícil.

Durante os dois primeiros segundos de doce na boca eu não senti nada. No terceiro senti que todo o seu aroma fora quebrantado pela saliva. Decidi comer então, mas aí veio o maior problema. O doce ainda estava tão quente que na minha tentativa de morder para sentir o gosto, acabei queimando a bochecha e a língua com a saída de seu líquido interno, o que me fez cuspir o doce na terra. Era o fim! Uma derrota para um rapazinho. Eu me recuperava da queimadura enquanto via Lucinha cair no chão completamente descontrolada de riso, se esperneando como se fosse um macaco louco. O doce estava no chão misturado à terra. Fiquei petrificado! Não acreditava que iria perder aquela oportunidade! O meu doce predileto - que minha mãe só fazia no dia de Natal, pois não tínhamos muito dinheiro para os ingredientes - estava cheio de terra. Olhei em volta e vi uma fileira de formigas saindo de baixo de uma folhinha de flor que carregavam e indo diretamente para o doce. Atrás de mim ouvi o Eistein, o cachorro capa preta do meu pai farejando e contornando a varanda em minha direção. Não podia deixar o doce se perder, mas ainda estava com a língua em chamas. Corri para a torneira que ficava por cima de um canteiro de flores, lavei a boca rapidamente e corri o máximo que pude, disputando o tempo com as formigas e com o capa preta do meu pai. Quando eu já estava a um metro do doce só pude ver cachinhos de cabelos castanhos voando sobre o meu rosto e roçando o meu nariz. Não eram meus, levei um empurrão e caí para trás, confuso. Lucinha havia chegado primeiro.

De uma só vez ela me mostrou a língua e comeu a barra inteira, pra depois lamber aqueles dedos sujos diante dos meus olhos. Numa mistura de ódio e horror, corri pra dentro da cozinha deixando um rastro de barro atrás de mim, e com lágrimas sobre meu rosto sujo implorei por um novo doce, quando mamãe virou com uma expressão severa e disse: - Nada disso! Você tem que começar a ser mais agradecido.

E então, foi lá, parado em pé de frente para a minha derrota. Parado de frente para o complô do destino contra mim, estupefato e impotente perante as duas razões da minha vida que, eu posso dizer, eu aprendi o que é ser homem.

Paulo E. Vasconcellos