Sunday, January 04, 2009

Nunca é Tarde Demais


- Vê se vá comer lá fora! - dizia a minha mãe farfalhando seu vestido ao andar e logo depois batia a porta atrás de mim. Eu ouvira sua voz berrando pra mim enquanto descia a escada, mas somente seu som abafado e fugaz. Eu estava deliciado demais com o cheiro do doce derretendo sobre minhas mãos salpicadas de terra. Eu pressentia, eu sabia que aquele era um momento memorável, lá no fundo eu sabia, ainda que naquela hora eu não desse maior crédito a tudo.
O cheiro era bom demais! Lucinha fazendo uma bolota de terra, a luz do sol minguando lilás lá longe, mosquitos movendo-se tontos sobre os nossos olhares cansados. Nós nos entreolhamos por um brevíssimo momento para voltarmos nossa atenção para o doce. Lucinha largou de pronto a terra e os brinquedos, limpando com muita feminilidade seus dedos sobre o vestido curto. Agora só pensávamos em devorar ferozmente aquele doce. Só de olhá-lo podiamos ouvir nosso estômago pescando o prazer da fartura. Éramos levados por nosso instinto animal. Para duas crianças pobres e caipiras nós até que podíamos dizer que tínhamos o necessário: o desejo, os sonhos, a indiferença infantil com o mundo e é claro, um amplo e misterioso banquete chamado "vida" - e tão gostoso que ele era que apesar das nossas apostas de corrida de bicicleta, escaladas em abacateiros e conflitos internos sobre a difícil decisão de espetar ou não aquele cacho de abelhas, pareciam percorrer rápido demais as vinte e quatro horas do dia. E no final de tudo, a nossa trágica e dramática relutância de ir para a cama era completamente esquecida com um simples beijo de boa noite na testa.



Mas eu estava lá, ao pé da escada, vislumbrado com o doce na minha mão. Contrariado, acabei dividindo o doce com Lucinha, que comeu tudo em um único segundo, preferindo descobrir o sabor pelos restos de sebo que lambeu dos dedos. Eu não, eu decidi comer bem devagar. Pra começar, coloquei a ponta da língua. Ainda estava tão quente que fiquei assustado ao pensar que minha irmã poderia estar queimando por dentro enquanto a metade dela descia goela abaixo, quando na verdade não aparentava nehuma amostra de sofrimento. Meus dedos calejados de moleque pareciam não ser tão frágeis quanto os órgãos inferiores. Decidi então dar-lhe uma esfriada. Eu sacodia a barra pelo vento enquanto sentia seu aroma se espalhar no ar e ser sugado por todos os poros do meu corpo, até que se arrepiassem os meus cabelos da nuca.



- Você não vai comer não? - Disse Lucinha pendendo a cabeça para esquerda e levantando os olhos com desdém. - Tá muito quente... - Disse eu, distraído e pensando na burrice de minha irmã em ter comido tudo de uma vez.



Cansado de sacudir pra lá e pra cá, decidi encostar o doce na ponta dos lábios. Salivei. Mas ainda estava quente. Aquilo me deixou irado. Fiquei automaticamente vermelho, não só porque queimara os lábios, mas pela humilhação de ouvir a gargalhada histérica de Lucinha, que apontava pra mim, como se eu fosse um frangote. Na revolta de ter sido humilhado por um doce e uma pirralha, e ainda com o orgulho ferido de ser menos resistente que uma menina gulosa, decidi colocar tudo de uma vez na boca. A descrição do que veio depois é muito difícil.

Durante os dois primeiros segundos de doce na boca eu não senti nada. No terceiro senti que todo o seu aroma fora quebrantado pela saliva. Decidi comer então, mas aí veio o maior problema. O doce ainda estava tão quente que na minha tentativa de morder para sentir o gosto, acabei queimando a bochecha e a língua com a saída de seu líquido interno, o que me fez cuspir o doce na terra. Era o fim! Uma derrota para um rapazinho. Eu me recuperava da queimadura enquanto via Lucinha cair no chão completamente descontrolada de riso, se esperneando como se fosse um macaco louco. O doce estava no chão misturado à terra. Fiquei petrificado! Não acreditava que iria perder aquela oportunidade! O meu doce predileto - que minha mãe só fazia no dia de Natal, pois não tínhamos muito dinheiro para os ingredientes - estava cheio de terra. Olhei em volta e vi uma fileira de formigas saindo de baixo de uma folhinha de flor que carregavam e indo diretamente para o doce. Atrás de mim ouvi o Eistein, o cachorro capa preta do meu pai farejando e contornando a varanda em minha direção. Não podia deixar o doce se perder, mas ainda estava com a língua em chamas. Corri para a torneira que ficava por cima de um canteiro de flores, lavei a boca rapidamente e corri o máximo que pude, disputando o tempo com as formigas e com o capa preta do meu pai. Quando eu já estava a um metro do doce só pude ver cachinhos de cabelos castanhos voando sobre o meu rosto e roçando o meu nariz. Não eram meus, levei um empurrão e caí para trás, confuso. Lucinha havia chegado primeiro.

De uma só vez ela me mostrou a língua e comeu a barra inteira, pra depois lamber aqueles dedos sujos diante dos meus olhos. Numa mistura de ódio e horror, corri pra dentro da cozinha deixando um rastro de barro atrás de mim, e com lágrimas sobre meu rosto sujo implorei por um novo doce, quando mamãe virou com uma expressão severa e disse: - Nada disso! Você tem que começar a ser mais agradecido.

E então, foi lá, parado em pé de frente para a minha derrota. Parado de frente para o complô do destino contra mim, estupefato e impotente perante as duas razões da minha vida que, eu posso dizer, eu aprendi o que é ser homem.

Paulo E. Vasconcellos

5 comments:

Le Magnifique said...

Não sei o que é pior: quando voce descobre que a vida não é como voce imagina na sua infância, ou quando voce já quase um adulto.
Mas, nos dois casos, o aprendizado é o mesmo.

Belo conto, Paulo!

Anonymous said...

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